O FESTIVAL DOS FESTIVAIS
O FESTIVAL QUE MUDOU A MPB
Festival da Record de 1967
Entre setembro e outubro 1967, aconteceu em São Paulo um dos mais memoráveis eventos da música no Brasil, o III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record. Naquele ano, o Teatro Record Centro, localizado na Av. Brigadeiro Luís Antônio, centro de São Paulo, recebeu o festival em decorrência de um incêndio fulminante que atingiu o Teatro Record Consolação, em julho daquele mesmo ano.
O Teatro Record Centro foi inaugurado em 1929 e chamado de Teatro Paramount (por isso o festival de 1967 também ficou conhecido como o “Festival do Paramount”). Atualmente o lugar pertence à empresa Renault, se tornando o Teatro Renault, desde 2012.
Depois do sucesso alcançado com o festival anterior, de 1966, no qual empataram na finalíssima as canções A Banda (Chico Buarque de Hollanda), defendida por Nara Leão, e Disparada (Geraldo Vandré/ Théo de Barros), defendida por Jair Rodrigues, Trio Novo e Trio Marayá, a Record fez, em 1967, mais um festival, talvez sem saber que viria a ser, possivelmente, o mais marcante de todos os que integraram a chamada “Era dos Festivais”.
Naquele tempo, a TV Record exigia que apresentadores e artistas usassem trajes de gala – em geral smoking – o que daria um aspecto mais austero aos certames e certamente contrastava com a alegria exacerbada presente nos festivais, especialmente da plateia, que se dividia em torcidas, se manifestando através de aplausos ou de estridentes vaias, elegendo ou reprovando os artistas, de acordo com seus gostos musicais ou, ainda mais, preferências políticas. Vale destacar que o público dos festivais era um personagem a parte, uma juventude de classe média, universitária, politizada, que estava em sintonia com os acontecimentos políticos do país, vivendo sob um regime militar vigente.
Dirigido por Solano Ribeiro (responsável por trazer os festivais para o Brasil, adaptando-os a partir do Festival italiano de San Remo) e apresentado por Blota Jr., Sônia Ribeiro, Randal Juliano e Cidinha Campos (os dois últimos entrevistando os artistas), o III Festival da Record ocorreu nos dias :
1ª Eliminatória
A primeira eliminatória aconteceu em 30 de setembro de 1967, no Teatro Record Centro, em São Paulo. Nesta eliminatória, Nana Caymmi foi muito vaiada pelo público após ser anunciada como última finalista. Isso porque o pública preferia a canção “O Combatente“, interpretada por Jair Rodrigues
Ordem |
Interpretes |
Canção |
Autores |
Resultado |
1 |
Jair Rodrigues |
“O Combatente“ |
Walter Santos e Tereza Souza |
Eliminada |
2 |
Silvio Cesar e Gal Costa |
“Dadá Maria“ |
Renato Teixeira |
Eliminada |
3 |
Sônia Rosa |
“E Fim“ |
Sônia Rosa |
Eliminada |
4 |
Chico Buarque e MPB4 |
“Roda Viva“ |
Chico Buarque |
Finalista |
5 |
Djalma Dias |
“A Moreninha“ |
Tom Zé |
Eliminada |
6 |
Edu Lobo e Marília Medalha |
“Ponteio“ |
Edu Lobo e Capinam |
Finalista |
7 |
Márcia |
“Eu e a brisa“ |
Johnny Alf |
Eliminada |
8 |
Demétrius |
“Minha Gente“ |
Demétrius |
Eliminada |
9 |
Claudete Soares |
“Ela Felicidade“ |
Vera Brasil |
Eliminada |
10 |
Wilson Simonal |
“O Milagre“ |
Nonato Buzar |
Eliminada |
11 |
Roberto Carlos |
“Maria, Carnaval e Cinzas“ |
Luis Carlos Paraná |
Finalista |
12 |
Nana Caymmi |
“Bom dia“ |
Gilberto Gil e Nana Caymmi |
Finalista |
2ª Eliminatória
A segunda eliminatória aconteceu em 6 de outubro de 1967, no Teatro Record Centro, em São Paulo. Após o acontecido na eliminatória anterior, ao ser anunciado Jair Rodrigues, a plateia começou a gritar “O Combatente” repetitivamente, em alusão à suposta injustiça acontecida na eliminatória anterior. No entanto, “Samba de Maria” não agradou o público e foi vaiado ao ser anunciado como finalista
Ordem |
Interpretes |
Canção |
Autores |
Resultado |
1 |
O Quarteto |
“Rua Antiga“ |
Roberto Menescal e Rubens Richter |
Eliminada |
2 |
Claudete Soares |
“Brinquedo“ |
Alfredo Naffah Neto e Walter de Carvalho |
Eliminada |
3 |
Wilson Simonal |
“Belinha“ |
Toquinho e Victor Martins |
Eliminada |
4 |
Silvio Cesar |
“Por Causa de Maria“ |
Marcos César e Paulo Scarpa |
Eliminada |
5 |
Gilberto Gil e Os Mutantes |
“Domingo no Parque“ |
Gilberto Gil |
Finalista |
6 |
Ronnie Von |
“Uma dúzia de rosas“ |
Carlos Imperial |
Eliminada |
7 |
Adilson Godoy e Golden Boys |
“Manhã de Primavera“ |
Adilson Godoy |
Eliminada |
8 |
Denisse de Kalafe |
“Cantiga de Jesuíno“ |
Capiba e Ariano Suassuna |
Eliminada |
9 |
Marília Medalha |
“Diana Pastora“ |
Fernando Lobo e João Mello |
Eliminada |
10 |
Elis Regina |
“O Cantador“ |
Dori Caymmi e Nelson Mota |
Finalista |
11 |
Sidney Miller e Nara Leão |
“A Estrada e O Violeiro“ |
Sidney Miller |
Finalista |
12 |
Jair Rodrigues |
“Samba de Maria“ |
Vinicius de Moraes e France Hime |
Finalista |
3ª Eliminatória
A terceira eliminatória aconteceu em 14 de outubro de 1967, no Teatro Record Centro, em São Paulo. Quando anunciado finalista, Sérgio Ricardo foi intensamente vaiado, o que deu início aos acontecimentos que culminaram na sua desclassificação na finalíssima. Por causa da resistência às guitarras elétricas na música brasileira, Caetano foi vaiado no princípio da sua apresentação. No entanto, ao final da canção, seria a mais aplaudida da noite.
Ordem |
Interpretes |
Canção |
Autores |
Resultado |
1 |
Geraldo Vandré |
“Ventania“ |
Geraldo Vandré e Hilton Acioli |
Finalista |
2 |
Wilson Simonal |
“Balada do Vietnã“ |
David Nasser e Elizete Sanches |
Eliminada |
3 |
Agnaldo Rayol |
“Anda que te anda“ |
Mário Lago e Ary Toledo |
Eliminada |
4 |
MPB4 |
“Gabriela“ |
Maranhão |
Finalista |
5 |
Elza Soares |
“Isso Não Se Faz“ |
Hermínio Bello de Carvalho e Pixinguinha |
Eliminada |
6 |
Jamelão |
“Menina Moça“ |
Martinho da Vila |
Eliminada |
7 |
Sérgio Ricardo |
“Beto bom de bola“ |
Sérgio Ricardo |
Finalista |
8 |
Maria Odette |
“Canção do Cangaceiro“ |
Carlos Castilho e Chico de Assis |
Eliminada |
9 |
Erasmo Carlos |
“Capoeirada“ |
Erasmo Carlos |
Eliminada |
10 |
Maria Creusa |
“Festa no Terreiro de Alaketu“ |
Antônio Carlos |
Eliminada |
11 |
Hebe Camargo |
“Volta Amanhã“ |
Fernando César e Mariah Brito |
Eliminada |
12 |
Caetano Veloso e Beat Boys |
“Alegria, Alegria“ |
Caetano Velosoa |
Finalista |
Final
A finalíssima aconteceu em 21 de outubro de 1967, no Teatro Record Centro, em São Paulo. Motivado pelas vaias recebidas na reapresentação da canção na eliminatória, Sérgio Ricardo decidiu alterar o arranjo da sua canção. Quando sua canção foi anunciada, o público não poupou vaias (o que não era exatamente raro nos festivais brasileiros), que se fortaleceram após o cantor afirmar que após o festival alteraria o nome da canção para “Beto bom de vaia”, ironizando o público. Ele até tentou interpretar sua canção, mas sobre fortes vaias não conseguia sequer ouvir a orquestra e, irritado, abandonou a performance, quebrou seu violão e o arremessou ao público. Minutos depois, Blota Júnior, um dos apresentadores do festival, anunciava a sua desclassificação da canção.
Ordem |
Interpretes |
Canção |
Autores |
Resultado |
1 |
Nana Caymmi |
“Bom dia“ |
Gilberto Gil e Nana Caymmi |
– |
2 |
Sidney Miller e Nara Leão |
“A Estrada e O Violeiro“ |
Sidney Miller |
– |
3 |
Caetano Veloso e Beat Boys |
“Alegria, Alegria“ |
Caetano Veloso |
4º |
4 |
Gilberto Gil e Os Mutantes |
“Domingo no Parque“ |
Gilberto Gil |
2º |
5 |
MPB4 |
“Gabriela“ |
Maranhão |
6º |
6 |
Elis Regina |
“O Cantador“ |
Dori Caymmi e Nelson Mota |
– |
7 |
Sérgio Ricardo |
“Beto bom de bola“ |
Sérgio Ricardo |
Desclassificada |
8 |
Edu Lobo e Marília Medalha |
“Ponteio“ |
Edu Lobo e Capinam |
1º |
9 |
Geraldo Vandré |
“Ventania“ |
Geraldo Vandré e Hilton Acioli |
– |
10 |
Roberto Carlos |
“Maria, Carnaval e Cinzas“ |
Luis Carlos Paraná |
5º |
11 |
Chico Buarque e MPB4 |
“Roda Viva“ |
Chico Buarque |
3º |
12 |
Jair Rodrigues |
“Samba de Maria“ |
Vinicius de Moraes e France Hime |
– |
O festival que atingiu o impressionante índice de 55% de audiência e 97 pontos no IBOPE, ainda em sua fase eliminatória, também levaria a emissora a bater o recorde mundial de audiência, entrando para o Guiness Book, vindo também a ser o programa com maior audiência no Brasil até os dias de hoje.
Segundo Zuza Homem de Mello, autor de A Era dos Festivais: “Mais de 4 mil músicas foram recebidas para a disputa de 25 milhões de cruzeiros e do troféu Viola de Ouro
para o primeiro colocado, 10 milhões para o segundo, 7 milhões para o terceiro, 5 milhões para o quarto e 3 milhões para o quinto. O melhor intérprete receberia a Viola de Prata.” (MELLO, 2003, p. 184). Em cada eliminatória foram apresentadas 12 canções entre as quais se classificavam 04 em cada fase, compondo uma final também com 12 canções.
O resultado:
Roberto Carlos, que defendeu Maria, Carnaval e Cinzas (Luiz Carlos Paraná) ficou no quinto lugar no certame
Em quarto lugar ficou Alegria, Alegria (Caetano Veloso), defendida por Caetano Veloso e o grupo argentino de rock Beat Boys. Com esta canção, Caetano (e Gil), inaugurava o chamado “som universal”, culminando no movimento tropicalista, que explodiria no ano seguinte através do emblemático disco Tropicália ou Panis et Circensis (1968), inspirado no lendário álbum dos Beatles, Sgt. Peppers’s Lonely Hearts Club Band (1967).
A marcha-pop de Caetano (que se apresentou com blazer xadrez e camisa de gola rolê laranja) começaria sendo vaiada pelo público mais ortodoxo, que rejeitava a novidade da guitarra elétrica, mas terminou sendo aplaudida e abrindo novos caminhos para a insurgente MPB, possibilitando fusões sonoras e universalismos, então refutados pelos mais tradicionalistas. A letra de “poesia câmera-na-mão”, juntava influências do Cinema Novo de Glauber Rocha e do antropofagismo oswaldiano, com referências a presidentes, fuzil, bandeiras, mas também a Claudia Cardinale, Brigite Bardot, a televisão e a Coca-Cola, considerada símbolo do imperialismo pelos esquerdistas.
O samba Roda Viva (Chico Buarque de Hollanda), defendido por Chico Buarque de Hollanda e MPB-4, ficou com o terceiro lugar. Roda Vida, de tom crítico, percebido em versos como “A gente quer ter voz ativa/ No nosso destino mandar/ Mas eis que chega a roda viva/ E carrega o destino pra lá”, também foi tema da peça homônima escrita por Chico Buarque no final de 1967, com estreia no início de 1968, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa.
Durante a apresentação desta peça em São Paulo, houve um incidente no qual um grupo do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o teatro, espancou os artistas e depredou o cenário. Embora possa ter havido um engano, pois, ao que parece, o grupo estava procurando uma peça do grupo Opinião, apresentada ao lado, no dia seguinte, Chico Buarque estava na plateia para apoiar o grupo, começando um movimento a favor da peça e contra a censura nos palcos brasileiros.
Com o segundo lugar, ficou Domingo no Parque (Gilberto Gil), defendida por Gilberto Gil (que horas antes de sua apresentação tremia e ardia em febre na cama, sendo resgatado por Paulo Machado de Carvalho, que o levou para o teatro) e Os Mutantes,
uma canção moderna, misturando berimbau e guitarra elétrica, os inovadores arranjos de Rogério Duprat e a cantiga de capoeira, o bucolismo da ribeira e uma letra cinematográfica, narrando quadro a quadro os enlaces ente Juliana, José e João. Juntamente com Alegria, Alegria, de Caetano, Domingo no Parque, inaugurava o chamado “som universal”, formando também as bases do Tropicalismo.
Mas, em primeiríssimo lugar, ficou a galvanizante Ponteio (Edu Lobo/ José Carlos Capinan), defendida por Edu Lobo, Marília Medalha, Quarteto Novo e Conjunto Momento Quatro.
Canção com ares sertanejos, recorrendo a violões, a emblemática flauta de Hermeto Pascoal e uma marcação de xaxado, trazendo muito da musicalidade nordestina e fazendo referência ao modo dos violeiros de todo o Brasil tocarem a viola, o ponteio, ato este reforçado pelo refrão cantado em uníssono: “Quem me dera agora eu tivesse uma viola pra cantar/ Ponteio”. A letra de Capinan também estava bem ao gosto da juventude politizada frequentadora dos festivais e ainda havia um carisma em Edu Lobo e uma imponência em Marília Medalha que certamente cativaram o público. Todos estes fatores levaram Ponteio a ganhar a Viola de Ouro e sair vencedora deste que foi considerado o “Festival dos Festivais”.
Outras canções que se destacaram foram O Cantador (Dori Caymmi/ Nelson Motta), defendida por Elis Regina, que ganhou o prêmio de melhor intérprete;
a quilométrica sertaneja A Estrada e o Violeiro (Sidney Miller), defendida por Nara Leão e Sidney Miller, que ganhou o prêmio de melhor letra;
o frevo Gabriela (Francisco Maranhão), defendido pelo grupo MPB-4;
o samba-canção Eu e a Brisa (Johnny Alf) , defendido por Márcia, que embora não tenha conseguido grande êxito no festival, viria a se tornar um dos grandes clássicos da música brasileira;
e o samba Beto Bom de Bola (Sérgio Ricardo), defendido por Sérgio Ricardo e Quarteto Novo, canção que se inspirava na vida do craque Garrincha, mas que parece não ter agradado o público,
levando Sérgio Ricardo a protagonizar um dos episódios mais lembrados dos Festivais, no qual, sendo impedido de cantar devido as vaias da plateia, se enfurece, quebra o violão e o lança em cima do público, sendo, por isso, desclassificado do certame.
Sobre este último caso, o próprio Roberto Carlos fez uma brincadeira durante uma entrevista a Cidinha Campos no evento:
Cidinha Campos: – O Roberto contou uma piada para a Jovem Pan que eu faço questão que ele repita aqui. Diga lá, Roberto!
Roberto Carlos: – Não é piada, não. É verdade!
Cidinha: – Ah, é?!
Roberto: – É! O Ponteio foi desclassificado.
Cidinha: – Por quê?
Roberto: – Porque não tem mais viola pra tocar, o Sérgio Ricardo quebrou.
Esse episódio e muitos outros foram retratados no documentário Uma Noite em 67, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, e lançado em 2010,
no qual aparecem os principais personagens do festival (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Roberto Carlos, além de Solano Ribeiro, Zuza Homem de Melo e Paulo Machado de Carvalho)
Documentário completo “Uma noite em 67”
Fonte
https://musicabrasilis.org.br/
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